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Amyr Klink

 

Amyr Klink, navegador e escritor

Um homem precisa viajar por sua conta, não por meio de histórias, livros ou tevê. Precisa viajar por si,

com seus olhos e pés para entender o que é seu, para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor

Por Nilton Pavin

 

Formado em Economia pela Universidade de São Paulo, Amyr Klink só foi descobrir sua paixão pelo mar mais tarde na vida. Nascido em São Paulo, filho de pai libanês e mãe sueca, Amyr sempre viveu muito perto da natureza por conta das atividades de seu pai, que, entre outras coisas, negociava terras para tê-las preservadas. 
Seu espírito de empreendedor de expedições marítimas talvez tenha raiz na época de criança, quando morou em vários locais diferentes, no melhor estilo “mambembe”, como ele próprio define. Com sua 40ª ida à Antártica em breve, Amyr busca sempre e incessantemente a eficiência e sustentabilidade em suas jornadas, não apenas pela preocupação ambiental, mas pelo simples fato de evitar desperdícios.
Oposto de aventureiro, Amyr planeja meticulosamente todas as suas empreitadas, se envolvendo com todos os aspectos técnicos de uma viagem, projetando o próprio barco, os equipamentos, a logística e muito mais. Acompanhe a seguir o bate-papo com o navegador. 

 

Como você descobriu o mar?

Eu descobri o mar pela literatura. Também ouvia as histórias de meus pais, que tinham viajado muito, mas eu ainda estava no circuito Caraguá-Paraty e queria muito conhecer outros lugares. Ao mesmo tempo, comecei a estudar (sozinho) a língua francesa, pela qual me apaixonei. Meus pais falavam vários idiomas, mas eles tinham tanto orgulho da língua portuguesa, que não nos ensinavam. Foi nessa fase, quando resolvi aprender por conta própria o francês, que descobri os primeiros relatos interessantes sobre navegações. Mas demorou muito tempo até que eu me envolvesse formalmente com o mundo náutico.

 

Quanto tempo?

Primeiro eu fiz Economia na USP, depois uma pós-graduação em Administração, porque a ideia era fazer o que todo mundo fazia naquela época: trabalhar em banco. Mas eu detestei o mercado financeiro. Eu gosto, é claro, de ter dinheiro suficiente para não me preocupar, mas me dedicar a isso como profissão, nem pensar. Então resolvi ter um pouco mais de liberdade e fui criar búfalos em Paraty. Foi uma experiência feliz e trabalhosa que demorou oito anos para engrenar. E foi exatamente nesse momento da minha vida que eu descobri o caso do francês Gerard Baudin que tinha atravessado o Atlântico Norte em um barco a remo. Como eu nunca gostei de futebol, o esporte que eu adotei na faculdade foi o remo. Que, aliás, era o esporte mais popular no Brasil antes do futebol. Todos os grandes clubes de futebol nasceram da prática do remo. Veja o próprio Corinthians, que tem dois remos e uma âncora em seu símbolo. O livro que eu li, com a experiência desse francês, foi marcante e intrigante. Ele realizou a travessia do Atlântico Norte em 1999, mas havia uma série de erros difíceis de entender. A começar que ele não era um remador e o próprio desenho do remo era inapropriado. E ele só remava com os braços, não tinha o acento deslizante. Um dia eu consegui falar com ele e perguntei por que ele não tinha usado as pernas para remar, como no remo olímpico. Ele respondeu (com aquele jeito despojado que o francês tem de se autocriticar) que simplesmente não sabia.

 

Então foi assim que surgiu a ideia de cruzar o Atlântico remando?

Eu me encantei com a história do francês e fiquei intrigado por que ele não aprimorou o projeto. Mas eu já gostava de canoas e me interessava muito pelos barcos brasileiros. É interessante notar que ninguém falava muito de uma das mais ricas e talvez autênticas manifestações culturais brasileiras ligadas ao design dos barcos regionais. Não existiam livros nem trabalhos sobre o assunto. Apenas alguns trabalhos esporádicos e pontuais. Há um livro do almirante Antonio Alves Câmara, um dos mais impressionantes trabalhos sobre cultura brasileira que já li, mas que nenhum intelectual brasileiro conhece, infelizmente. Eu gosto muito de explorar coisas que estão ainda adormecidas. Então, de repente, surgiu a ideia de remar da África até o Brasil. Acabei planejando e fazendo a viagem, que foi uma experiência interessante, mas que não era o objetivo da minha vida. O objetivo da minha vida era conhecer a Antártica, já que eu havia começado a ler e estudar sobre os relatos polares feitos por homens de verdade, que não eram oportunistas, nem intelectuais procurando promoção.

 

Já voltaremos à Antártica, mas antes conte como foram os preparativos para a travessia do Atlântico.

Foram difíceis. Eu tive várias decepções no processo de construção do barco a remo, inclusive alguns canos que tomei de diversos construtores. Depois tive problemas burocráticos na África quando levei o barco para lá. Foi quando eu descobri que havia ocorrido outras tentativas anteriores, mas todas fracassadas e que custaram caro ao governo sul-africano, que precisou resgatar as pessoas. Então foi um período meio de “inferno astral” com a burocracia e diplomacia locais, mas a viagem em si foi tranquila. O mais difícil talvez tenha sido o que antecedeu a ela. Quando eu finalmente estava no meio do Atlântico remando foi ótimo, sem ninguém para perturbar, só fazer o que eu sabia fazer: controlar a ansiedade, organizar a rotina, a comida, o uso da água... Foram 100 dias de viagem. Isso foi em 1984.

 

A viagem teve uma repercussão incrível. Você esperava por isso?

A repercussão foi absurda na hora e eu não esperava por isso. A mídia me transformou em um tipo de herói do Atlântico. Calma: eu não salvei ninguém, só fiz o que eu queria fazer.

 

Além de projetar e construir o barco a remo, você já tinha planos de fazer o mesmo com uma embarcação que fosse

apropriada para a Antártica?

Sim, eu já tinha planos de fazer um barco especial para ir para a Antártica, só que esse mundo de barcos ainda era muito distante para mim. Eu não tinha as habilidades necessárias para isso, embora gostasse muito de mecânica. Para fazer barco precisa ter habilidades específicas. E tudo isso eu fui descobrindo nos livros. Fui estudando. No período que morei em Paraty, eu conheci alguns franceses que se tornariam figuras quase míticas e que passavam por lá a caminho da Antártica. Foi muito inspirador. Mas antes disso, a única coisa que estava do meu tamanho naquela época era fazer um barco para remar no oceano. Não era uma proeza tão complicada.

 

Depois que você completou a viagem, o que fez?

Eu me meti em outra “enrascada”. Como eu fiquei com dívidas, decidi montar uma empresa só para viabilizar esses projetos. Montei um escritório, mas levou muito tempo até as coisas engrenarem. A experiência de fazer um barco e completar a viagem me deu acesso a pessoas que de fato são importantes nesse meio. Eu comecei a me envolver com navegadores franceses que viajavam para a Antártica e que faziam os barcos com as próprias mãos. Eram caras incríveis. Então, quatro anos depois da travessia do Atlântico, eu recebi um convite da Marinha para ir para a Antártica. Pesquisei cartas náuticas e estudei as melhores formas de fazer um barco para essa finalidade.

 

Depois disso, quantas vezes você já esteve no continente Antártico?

Estou me preparando para a 40ª viagem. Hoje eu faço parte de um grupo, que não é pequeno, com umas 20 pessoas em todo o mundo que fazem viagens regulares para lá. A diferença é que eu faço barcos e equipamentos concebidos do zero. E esse é um aspecto do qual eu me orgulho bastante. Embora isso tudo demande muito mais tempo, nós temos a vantagem de nos envolver com todos os aspectos técnicos de uma viagem para lá. Desenvolvemos as soluções, o barco, os equipamentos, a logística... Com os anos isso acabou se transformando num diferencial. Eu gosto de pesquisar materiais mais eficientes e sustentáveis (embora essa palavra esteja bem desgastada) não por uma preocupação ambiental pura e simples, mas porque não é inteligente você desperdiçar recursos. E no mar todos os recursos são escassos. Na Antártica, principalmente, você tem que imaginar autonomia para ir sem incomodar ninguém, para permanecer lá, para voltar e eventualmente para ficar além do previsto. Então isso é bastante desafiador, porque você não pode ir para lá com menos de dois anos de autonomia. 

 

Você se considera um ambientalista nato?

Eu acredito que todos somos ambientalistas por natureza, pelo próprio instinto de sobrevivência. Por isso não gosto muito de usar esse termo. Eu creio que nós devemos tratar com respeito todas as coisas que nos cercam e das quais dependemos para viver. Meu pai já tinha esse conceito enraizado. Quantas vezes eu não assisti brigas entre ele e algum funcionário que tinha derrubado uma árvore para fazer uma cerca. Ele preferia deixar uma pessoa tomando conta do lugar do que cortar árvores para fazer a cerca. Na época eu achava que ele era até um pouco radical pela preocupação obsessiva que ele tinha com a face da encosta, vertente, nascente... Mas percebi depois de um tempo que ele era assim porque tinha nascido em um país que tinha perdido suas florestas para a indústria naval e depois ele morou no oriente, no extremo leste da Pérsia, onde existiam exatamente os mesmos problemas, mais o complicador fator frio. Havia ainda outros problemas ambientais que envolviam conflitos, guerras, diferenças religiosas e culturais.

 

Seu interesse pelo meio ambiente veio por intermédio do seu pai?

Eu acho que acabei desenvolvendo um interesse pelo meio ambiente por um caminho diferente. Meu pai comprava fazendas por causa das florestas, mesmo sabendo que teria problemas com Incra e com invasores. Ele nunca usou a palavra ambientalista para se definir, mas era isso o que ele era. E eu confesso que quando saí da escola de Economia, meu objetivo era produzir naquelas terras, mas no final ele estava certo. São essas terras que hoje sustentam economicamente a cidade de Paraty e que justificam o interesse turístico da região.

 

Agora vamos falar sobre a Antártica. Você está indo para lá pela 40ª vez. No mínimo, você ama o continente branco, certo?

Primeiro de tudo, eu tenho adoração pela experiência humana em um continente que, em tese, não foi ocupado permanentemente pelos humanos. Por várias razões. Primeiro pelo aspecto literário que produziu uma sequência de relatos verdadeiros e casualmente bem escritos que são fascinantes. Eu acabei desenvolvendo um interesse emocional pela Antártica. Depois, comecei a perceber que o continente era uma espécie de termômetro em vários aspectos, não apenas com relação ao clima, mas à tecnologia, à capacidade de organização, ao desafio humano de ocupar periodicamente e por longos períodos lugares inóspitos. E, no meu caso, que gosto de pensar e desenvolver equipamentos e embarcações, também representou um desafio técnico.

 

O que você pode perceber ao longo desses anos com relação às mudanças que vêm ocorrendo por lá?

Eu passei a conviver com pessoas ligadas às transformações climáticas e o que mais me preocupa é a fragilidade da região. Apesar da força do oceano austral, dos ventos violentos do oeste, dos movimentos do gelo, completamente fora de escala do que a gente conhece em outras regiões do planeta, a Antártica é um continente frágil e mínimas interferências na região podem se tornar um testemunho permanente. Seja no aspecto científico das amostras de gelo que contam a história da terra, até aspectos ambientais como naufrágios, ou equipamentos que se jogam fora. Nos primeiros anos que estive lá, ainda não existia o conhecimento de uma série de coisas. Eu, por exemplo, ficava horas sem camisa por lá. Hoje, eu nunca faria isso. Também o conhecimento de produtos muito sensíveis à ação ultravioleta que usamos nos barcos, como o polipropileno, nos primeiros anos que estive lá essa noção não era perceptível.

 

O que te preocupa com relação ao continente antártico?

Preocupa-me um pouco a atividade turística intensiva que vem ocorrendo. Todos que começaram a frequentar o continente, no começo iam por amor e interesse ambiental, mas como todo mundo precisa de dinheiro, muitas dessas pessoas acabaram se tornando charteadoras e turistas. Nesse aspecto eu acho que sou o único cara que vai para lá regularmente e não faz charter no barco (eu não levo turistas no meu barco). No começo, eu era contra essa atividade turística e hoje eu percebi uma coisa interessante: às vezes, os problemas constroem soluções, então a atividade turística na Antártica passou a ser economicamente promissora e interessante, porque só se mostrou viável com o uso de pequenas embarcações. Os barcos grandes (com mais de 1.000 pessoas) se mostraram completamente inadequados. O turismo atual conta com navios que levam uma média de 150 pessoas. Também surgiu nesse meio tempo um órgão regulador, por iniciativa dos próprios operadores turísticos, o IAATO (International Association of Antarctica Tour Operators). Ele criou um sistema de controle supercriterioso, até mais do que pretendiam os próprios responsáveis científicos das bases que atuavam na Antártica. Aliás, têm pessoas muito irresponsáveis por lá. A maioria da ação de pesquisa na Antártica, em termos ambientais, foi muito irresponsável. Houve muitos casos lá de bases de pesquisa que levaram equipamentos que poderiam muito bem ser testados em qualquer outro lugar. Não havia código de condutas e procedimentos. Hoje esse código existe. E ele é rigoroso e viabiliza uma atividade feita com impacto baixo, onde as pessoas que saem de uma viagem como essa, voltam transformadas em uma espécie de embaixador de cuidados ambientais. Eu acredito que da forma como as coisas estão sendo feitas hoje em dia, não há impactos para a Antártica, embora a navegação sempre seja uma atividade de risco. Veja o que aconteceu com o barco italiano que naufragou há pouco... Há também barcos de pesca que atuam por lá, a frota japonesa que sempre consegue renovar as licenças para pesca de baleias, barcos muito antigos ainda operando. Uma coisa boa foi a proibição do uso de óleo pesado, o que já limitou bastante o uso de frotas mais antigas.

 

O que mais te preocupa com relação à degradação do meio ambiente?

Minha maior preocupação hoje não está ligada à atividade industrial, porque eu acho que existem vários exemplos de como conciliar isso, mas está ligada à cegueira de alguns países em desenvolvimento em relação ao impacto que certos conceitos de vida produzem, e aos conflitos, às guerras. Quando você está em uma região de guerras, não tem condição de olhar para as plantas, para os bichos ou para o equilíbrio ambiental. Eu acredito que estamos vivendo um momento de prepotência e arrogância por parte de Israel, dos EUA, Irã, e de vários outros países que, dentro de sua inacreditável cegueira e arrogância, estão trabalhando irmanados para produzir vários conflitos. Estamos vivendo um momento muito ruim de ultranacionalismo político e um ofuscamento em relação ao conceito de sucesso.

 

Quais são seus projetos futuros?

Eu pretendo continuar expandindo a capacidade que temos de sermos mais eficientes. Não apenas pela preocupação ambiental, mas pelo fato de não desperdiçar energia. Dói desperdiçar. Eu acho que a gente ainda desperdiça muita energia, por exemplo, em um veículo hoje em dia. Não é uma coisa inteligente. Então essas coisas são tecnicamente assuntos que me interessam e que eu estudo profundamente. E hoje eu acho que a gente pode ser mais eficiente. É lindo viajar pelo mundo num veleiro, usando a energia do vento, mas isso é caro. Ambientalmente é errado porque um jogo de velas hoje, por causa do problema de ultravioleta, dura duas temporadas numa viagem de volta ao mundo e o custo da sua troca cobre cinco viagens para a Antártica usando óleo diesel. O uso do óleo é mais eficiente, mais barato. Em termos ambientais produz menos impacto do que se forem produzidas 3 toneladas de tecido sintético, que não é reciclável. Nós testamos todas as possibilidades até a exaustão. Cito como bom exemplo o motor Stirlin, cuja patente é de 1816 e até hoje não acharam um motor mais eficiente do que esse. Ele queima qualquer espécie de combustível, até o calor do sol. Funciona com a luz solar. O Brasil tem uma situação privilegiada nesse aspecto hoje. A gente tem tecnologias novas e potencial de propor soluções nessa área de energia, o que eu acho fascinante. Embora a gente ainda não tenha educação corporativa para isso, eu acredito que temos uma capacidade de aprendizado muito boa.

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